Definição
O conceito de “esferas autônomas de valor”, desenvolvido por Max Weber (2010b; 2016), é um marcador importante para a compreensão do avanço do processo de racionalização e da fragmentação da vida social na modernidade, através da autonomização dessas formas (esferas) de organização, ordenamento e conduta de vida (Lebensführer). Cada esfera apresentada por Weber — religiosa, econômica, política, estética, erótica e intelectual — segue suas próprias regras e lógicas valorativas, frequentemente entrando em tensão ou aproximação umas com as outras. Esse processo seria um dos principais aspectos que derivam do avanço da racionalização moderna (racionalismo), ao mesmo tempo que representa a fonte das grandes tensões e dilemas da vida contemporânea, desembocando naquilo que Weber (2010a; 2011) associa como uma volta ao conflito politeísta de valores em uma intensa luta, ou guerra dos deuses, modernos.
A Esfera Religiosa e a Racionalidade
É no texto Uma consideração intermediária: teoria dos estágios e direções da rejeição religiosa do mundo (2016) que é demonstrado como a religião estabelece uma ética própria, gerando conduta, autonomia e autorregulação — em especial as religiões de salvação, ou soteriológicas, aquelas que, conforme Weber (2016), prometem a salvação ao indivíduo e, para isso, elaboram sistemas de regras e doutrinas que orientam a conduta dos fiéis. No contexto do cristianismo, especialmente nas vertentes protestantes, a ascese intramundana assume papel central. Esse tipo de ascetismo, ao contrário da fuga do mundo característica das tradições monásticas, estimula a disciplina e a renúncia dentro do próprio mundo, em atividades cotidianas, como o trabalho. É justamente no predomínio e extensão dessa ascese racional intramundana que Weber identifica como um fator fundamental no desenvolvimento da racionalidade moderna. A ética protestante, por exemplo, ao legitimar o trabalho árduo e a acumulação de riqueza como sinais de eleição divina, contribui para a formação de uma esfera econômica que segue suas próprias normas racionais, desvinculadas da moral religiosa (Weber 2004; 2010b; 2016) Weber destaca que a racionalidade formal, que se consolida na esfera econômica e no, especialmente no capitalismo ocidental moderno, deriva, em grande parte, dessa lógica religiosa ascética. A religião, ao criar padrões rígidos de comportamento e ao oferecer sentido para o sofrimento e a renúncia, acaba por moldar uma racionalidade própria que, em certo ponto, torna-se autônoma. Essa autonomia se manifesta nas regras do mercado e da burocracia, que se separam da esfera religiosa e adquirem legitimidade própria (Weber, 2010b; 2016)..
A tensão entre valores e a “guerra dos deuses”
Embora Weber demonstre a forte influência da ética religiosa no processo de racionalização das demais esferas de valor, Oakes (2003) alerta que o conceito de “esferas autônomas de valor” conforme a elaboração de Weber não admite a possibilidade de um valor primordial que funcione como uma espécie de matriz a partir da qual todas as outras posições de valor (econômico, político etc.) se derivam. As posições de valor de cada esfera, segundo Oakes (2003), tendem a se fundamentar mais no conflito valorativo do que em suas afinidades. O processo de secularização e racionalização da modernidade seria, essencialmente, uma série de confrontos e distanciamentos entre essas esferas emergentes e a sustentação de seus valores próprios como formas conduta de vida na mais diversa pluralidade valorativa concebível. Ao tratar do valor de determinada cultura frente a outra, por exemplo, Weber anunciou em sua palestra Ciência como vocação (1919) que “aí, também, diferentes deuses se combatem e, sem dúvida, por todo o sempre” e reforçou categoricamente que “[...] tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo, que se encontrava sob o encanto dos deuses e demônios, mas assume sentido diverso” (Weber, 2011, p. 50). Neste sentido, Friedland (2013) nos lembra como Weber (2011) demonstra que valores funcionam como ‘‘deuses, ou divindades, das mais variadas ordens, em uma espécie de politeísmo de valores aos quais nos dedicamos na mesma direção do “homem helênico” que oferecia sacrifícios nos templos dos antigos deuses. Na medida em que o racionalismo e o desencantamento do mundo avançam, estes valores entram em um franco embate uns com os outros em uma verdadeira “guerra dos deuses” modernos.
Relações Atração entre as Esferas
A relação entre as esferas é marcada por tensões constantes, mas também por momentos de aproximação. Há uma certa proximidade entre a esfera política e a esfera econômica. Ambas compartilham uma racionalidade impessoal e formal, baseada na administração eficiente e no cálculo racional. A esfera econômica, impulsionada pela lógica capitalista, alinha-se com a política na medida em que ambas buscam a organização racional da sociedade. No entanto, a tensão entre essas esferas e a religião permanece forte, uma vez que a racionalidade econômica, por exemplo, ao se basear no lucro e na acumulação de riqueza, contrasta com os princípios de renúncia e ascetismo promovidos pela esfera religiosa (Weber, 2010b; 2016).
Referências Bibliográficas
OAKES, Guy. Max Weber on Value Rationality and Value Spheres. Max Weber Studies, v. 4, n. 1, p. 85-109, 2004.
FRIEDLAND, Roger. Weber's Value Spheres: A theory of institutional change. Sociological Theory, v. 31, n. 4, p. 391-418, 2013. Disponível em: https://www.asanet.org/sociological-theory. Acesso em: 06 set. 2024.
WEBER, Max. A ética e o “espírito” do capitalismo. Trad. José M. M. Macedo. Ed. Antônio F. Pierucci (Org.). 12. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WEBER, Max. A ciência como vocação. In: GERTH, H.H., WRIGTH-MILLS C. (orgs.) Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, LTC Editora. 5. Imp. [1946] 2010a. pp. 90-110.
WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: GERTH, H.H., WRIGTH-MILLS C. (orgs.) Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, LTC Editora. 5. Imp. [1946] 2010b. pp. 226-251.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2011.
WEBER, Max. Uma consideração intermediária: teoria dos estágios e direções da rejeição religiosa do mundo. In: Ética econômica das religiões mundiais: ensaios comparados de sociologia da religião – Confucionismo e Taoismo. vol. I. Petrópolis: Vozes, 2016. pp. 361-406.
Como citar este verbete:
CARVALHO, Marcio J. R. de. Guerra dos deuses: Verbete. In: Enciclopédia Max Weber. 2024. Disponível em: https://www.enciclopediamaxweber.org/%C3%ADndice-geral-de-entradas/guerra-dos-deuses Acesso em: dd.mm.aaaa.