Contexto e Definição
A teoria das Esferas Autônomas de Valor, de Max Weber (2016), refere-se à divisão da sociedade moderna em esferas de atividade social como formas de conduta de vida (Lebensführer), cada qual regida por uma lógica própria e relativamente independente das outras.
Esfera Religiosa e racionalidade ocidental moderna
As investigações de Weber sobre as religiões mundiais, particularmente o cristianismo, revelam como a ética religiosa foi um agente no processo de racionalização. As religiões de salvação, ou “soteriológicas”, são aquelas que oferecem aos crentes uma visão de mundo que promete a redenção e a libertação do sofrimento terreno. A ascese intramundana é um conceito importante cunhado por Weber religiosa (2010b; 2016) para demonstrar como as religiões soteriológicas moldaram a racionalidade moderna, especialmente no Ocidente.
Afinidades e tensões entre as esferas autônomas de valor
A religião também criou um arcabouço ético que, com o tempo, se autonomizou e deu origem a outras esferas de valor, fosse por afinidades eletivas ou por tensão. A ética ascética da disciplina monástica e a negação dos prazeres mundanos em nome da salvação, contribuiu como uma consequência impremeditada — de maneira direta, mas não planejada — para a formação de uma ética econômica racional, servindo como uma força que incentivava a disciplina e a organização da vida cotidiana de acordo com princípios racionais.
A tensão entre a esfera religiosa e a econômica é emblemática desse processo porque, no início, a economia estava profundamente enraizada em normas e princípios religiosos, especialmente no que diz respeito ao uso ético dos recursos e da riqueza. No entanto, com a racionalização crescente do capitalismo, a esfera econômica passou a seguir uma lógica própria, desvinculada da moral religiosa, baseada no lucro e na eficiência, movimento de autonomia que gerou um conflito entre as exigências da religião, que prega o desinteresse material, e a lógica econômica capitalista, que visa a acumulação e o enriquecimento individual. A esfera política também se distanciou da religião ao longo do processo de modernização. Historicamente, a política esteve intimamente ligada à religião, com muitos líderes políticos justificando seu poder com base em preceitos religiosos. No entanto, com o surgimento do Estado moderno, laico e impessoal, e da burocracia, a esfera política se organizou em torno de uma racionalidade própria, caracterizada pela eficiência técnica e pelo uso legítimo da força. Esse afastamento gerou tensões entre a moral religiosa e as necessidades pragmáticas da governança. A política, como esfera autônoma, passou a operar sob uma lógica de poder que nem sempre se alinhava com os valores de compaixão e fraternidade promovidos pela religião. Entretanto, a esfera religiosa nunca perdeu totalmente sua influência. Mesmo com o surgimento de esferas autônomas de valor, — a econômica, a política, erótica, estética, e a intelectual —, a religião continua a oferecer uma visão de mundo que rivaliza com essas esferas. Weber religiosa (2010b; 2016) sugere que, embora a religião tenha perdido poder institucional, ela ainda fornece uma estrutura de sentido para muitos indivíduos e, além disso, a religião mantém uma relação ambígua com esferas como a estética e a erótica, entre a tensão e a repulsa. Enquanto a esfera estética oferece uma forma de “salvação mundana” por meio da experiência estética e sensorial, a esfera erótica, ao buscar o prazer e a paixão, entra em conflito direto com as normas ascéticas religiosas. Weber também discute a relação entre a esfera religiosa e a intelectual, especialmente no contexto do desencantamento do mundo moderno. A religião, que antes fornecia explicações para fenômenos naturais e sociais, viu-se progressivamente substituída pela ciência e pela racionalidade intelectual: “O desencantamento do mundo, causado pela racionalização intelectual e científica, retira do universo seu caráter mágico e encantado” (Weber, 2010b, p. 385). No entanto, Weber (2010b; 2016) argumenta que a tensão entre essas esferas nunca é totalmente resolvida, pois a ciência, ao contrário da religião, não oferece respostas sobre o sentido último da vida. A religião, ao prometer a salvação e a redenção, continua a desempenhar um papel importante em tempos de crise existencial e moral.
A “Cabeça de Janos” e o Paradoxo das Esferas
Weber demonstra que o processo de racionalização interna torna a religião uma esfera social com valores e regras próprias, revelando, também, como este processo de autonomização pode influir, conduzir e ordenar outras formas de organização da vida social. A Cabeça de Janus é a figura evocada por Weber para ilustrar esse movimento aparentemente contraditório [paradoxo das esferas]. Nas religiões soteriológicas, a tensão existente entre as religiões e o mundo traz a conquista da renúncia do mundo consubstanciada em práticas ascéticas que o negam, por um lado e, pelo outro, o domínio do mundo como consequência impremeditada, posto que isso seria possível apenas em virtude dos poderes mágicos que somente aquela renúncia pode proporcionar (Weber, 2010b; 2016).
Referências Bibliográficas
WEBER, Max. Uma consideração intermediária: teoria dos estágios e direções da rejeição religiosa do mundo. In: Ética econômica das religiões mundiais: ensaios comparados de sociologia da religião – Confucionismo e Taoismo. vol. I. Petrópolis: Vozes, 2016. pp. 361-406.
WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: GERTH, H.H., WRIGTH-MILLS C. (orgs.) Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, LTC Editora. 5. Imp. [1946] 2010b. pp. 226-251.
Como citar este verbete:
CARVALHO, Marcio J. R. de. Esfera Religiosa: Verbete. In: Enciclopédia Max Weber. 2024. Disponível em: https://www.enciclopediamaxweber.org/%C3%ADndice-geral-de-entradas/esfera-religiosa Acesso em: dd.mm.aaaa.